OPINIÃO

Juscelino Eudâmidas Bezerra é professor do Departamento de Geografia da Universidade de Brasília. Graduado e mestre em Geografia pela Universiade Estadual do Ceará, doutor pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Realizou estágio de pós-doutorado no Instituto de Estudos Sociais da Erasmus University of Rotterdam (Holanda).

Juscelino Eudâmidas Bezerra 

 

Em agosto de 2016, o governo federal lançou o PlanoAgro+ com o objetivo de propor ações para a desburocratização do agronegócio brasileiro, diminuindo, por exemplo, a fiscalização em muitos setores sob a alegação de que é o mercado que tem de punir as empresas. O ministro da Agricultura, Blairo Maggi, justificou as medidas afirmando que o Estado não tem mais condições para contratar centenas de funcionários para atuar na fiscalização. Portanto, o Estado não deve necessariamente chancelar as empresas, e sim apostar na realização de fiscalizações pontuais, seletivas. A lógica era simples, qual seja: uma grande empresa que participa de mercados internacionais e que investe milhões de dólares em processo e controle não precisa necessariamente ser fiscalizada por mecanismos burocráticos do Estado. Meses depois tivemos um dos maiores escândalos da história envolvendo importantes empresas do complexo carne a partir da divulgação das investigações pela Polícia Federal por meio da Operação Carne Fraca.

 

Após o escândalo o governo federal agiu rapidamente na tentativa de salvaguardar seus instrumentos de fiscalização e controle com direito a uma visita relâmpago do ministro da Agricultura a um supermercado em Brasília. A visita ao supermercado não pode nos passar desapercebida, tendo em vista que é justamente nesses estabelecimentos onde são adquiridos boa parte dos mantimentos presentes nas residências dos brasileiros. Dito de outra forma, é no supermercado onde nos conectamos com uma verdadeira rede de produção global de alimentos.

 

Nesse portal, podemos encontrar uma infinidade de produtos frescos e processados provenientes tanto do agricultor periurbano quanto de gigantes multinacionais localizadas do outro lado do Atlântico. Sendo assim, um consumidor minimamente perspicaz pode se indagar acerca do grau de confiança que efetivamente podemos depositar com relação à origem e à segurança dos alimentos disponibilizados por uma extensa rede de fornecedores.

 

Muitos pesquisadores têm demonstrado que os supermercados deixaram de ser apenas um simples ponto de comercialização e distribuição de produtos alimentícios e assumiram também a responsabilidade por influenciar diretamente os padrões de produção e de consumo. Logo, esses estabelecimentos conduzem a decisão do que será produzido, onde e qual padrão será adotado.

 

A professora Jane Dixon vai além ao afirmar que as redes de supermercados hoje são verdadeiras autoridades alimentares. Nesse contexto, a Operação Carne Fraca pode representar nova configuração no setor, no qual os supermercados podem assumir maior protagonismo na definição dos esquemas de auditoria e certificação entre seus fornecedores.

 

Algo que já acontece, por exemplo, no setor de frutas e legumes a partir da certificação Global.G.A.P, criada pelas redes de supermercados na Europa para garantir a segurança dos alimentos e a adequação às boas práticas agrícolas dos produtos disponibilizados pelos seus fornecedores. Ao fim e ao cabo, o que está em jogo é a definição da governança do setor agroalimentar. Nessa arena de regulação, o dado novo é que o Estado não necessariamente exerce um papel central no comando dos padrões de produção. Tanto que hoje as certificações mais respeitadas e difundidas na intermediação entre produtores e consumidores de alimentos são privadas.

 

O mundo das certificações privadas, apesar da sua autoimagem de eficiência frente ao Estado, impõe igualmente desafios. O principal deles diz respeito aos mecanismos de adesão a priori voluntários que na prática rapidamente se transformam em mandatórios para todo o mercado. Com isso, podemos verificar a criação de megaestruturas de poder cujo resultado potencialmente pernicioso é o de definir quem vai participar ou não do mercado, quem vai exportar, sob quais condições sem que nenhuma instância normativa nacional ou supranacional possa interferir diretamente nos acordos business to business.

 

Nesse cenário, o mais visível é que, geralmente, as grandes empresas são aquelas mais aptas no atendimento às exigências impostas pelas certificações privadas. O consumidor, envolvido sem perceber nessa disputa pelo poder de governar, pode ficar na dúvida sobre a quem podemos delegar a segurança dos alimentos. Conhecer o agricultor que produz diretamente aquilo que comemos nunca foi uma demanda tão premente como hoje. Exatamente por isso não podemos escantear o agricultor familiar e camponês das nossas vidas como se fossem resquícios de um modo de vida pretérito.

 

Determinados setores da sociedade perceberam essa importância e passaram a modificar seus hábitos alimentares e de consumo adquirindo seus alimentos mediante clubes de compra, feiras de produtos orgânicos, entre outras estratégias. Tais mudanças podem redefinir completamente a interação cidade e campo e, consequentemente, a forma como nos relacionamos com os alimentos.

Palavras-chave