OPINIÃO

Debora Diniz é professora Faculdade de Direito, da Universidade de Brasília e pesquisadora da Anis - Instituto de Bioética Direitos Humanos e Gênero. Graduada em Ciências Sociais, mestre e doutora em Antropologia, todos pela UnB, com pós-doutorado pela UnB e pela Universidade de Leeds (Inglaterra),  É membro da Câmara Técnica de Ética e Pesquisa em Transplantes do Ministério da Saúde e membro do Advisory Committee do Global Doctors for Choice /Brasil. Vice-chair do board da International Womens Health Coalition. Atua nos temas bioética, feminismo, direitos humanos e saúde. Foi pesquisadora visitante na Universidade  de Leeds, Reino Unido (Estudos de Gêneros); Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Instituto de Medicina Social); Instituto Oswaldo Cruz (Comunicação, Informação e Saúde); Universidade de Michigan, EUA (Faculdade de Direito); Universidade de Toronto, Canadá (Faculdade de Direito e Centro de Bioética); Universidade de Sophia, Tóquio (Instituto Iberoamericano); Cermes, França (Centro de Pesquisa, Medicina e, Ciência, Saúde, Saúde Mental, Sociedade); Universidade da Califórnia em Berkeley, Estados Unidos (Departamento de Sociologia); e Universidade de Leiden, Holanda (Departmento de Antropologia). Entre vídeos produzidos e publicações, é também autora de seis livros e tem oito organizados.

Debora Diniz

 

O Brasil anunciou o fim da situação de emergência para a epidemia de vírus zika. A fábula científica é de que haveria um início, um meio e um fim das epidemias. Zika está ainda entre nós, ou melhor, está entranhada na angústia das mulheres jovens, em particular das que querem ter filhos e habitam as terras do zika. O vírus zika não se foi do Brasil – os números diminuíram desde a chegada da nova doença, mas não houve fim de uma epidemia cujo vetor é abundante e a transmissão é também sexual.


Como em um pesadelo para o dia seguinte dos que acreditam na fábula do fim de uma epidemia, divulgamos o estudo Zika em Alagoas: a urgência dos direitos. O estado era descrito como um caso paradoxal pelo Ministério da Saúde, pois não se sabia por que a epidemia teria sido avassaladora nos vizinhos Bahia, Paraíba e Pernambuco, e branda em Alagoas. Em dezembro de 2016, os números absolutos de crianças confirmadas para a síndrome do zika era irrisório pelas tabelas da vigilância epidemiológica, menos de 4% do total nacional. As mulheres do Sertão de Alagoas não eram as mães da epidemia, suas histórias e sobrevivências eram desconhecidas.


De carro, percorremos 21 dos 40 municípios com casos notificados no estado; entrevistamos 49 mulheres com filhos com diagnóstico da síndrome congênita do zika ou ainda em investigação. O retrato é desolador: são mulheres muito jovens, 75% delas viveram a primeira gravidez ainda na adolescência, sendo que seis tiveram o primeiro filho antes dos 15 anos. Alagoas é o estado com menor IDH do país, e as mulheres da epidemia de zika não escapam à perversidade da desigualdade da sociedade brasileira. São negras, adolescentes, que pouco frequentaram a escola e não trabalham. Entre as adolescentes, 40% não estão em nenhuma das políticas sociais de transferência de renda, como o Bolsa Família ou o Benefício de Prestação Continuada (BPC). Se analisarmos cada benefício separadamente, o cenário é ainda mais grave: 75% delas não recebiam o BPC e 44% não recebiam o Bolsa Família.


Vivemos um tempo de escândalos políticos. Eles são assustadores, é verdade, mas o Programa Criança Feliz foi anunciado como um conto de fadas para proteger todas as crianças de até 6 anos. Falou-se de benefício especial para as crianças com microcefalia pelo zika. Nada disso encontrei nas casas que visitei. Encontrei desamparo e abandono: quase metade das crianças não tinha acesso a nenhum serviço de estimulação precoce, uma em cada duas nem sequer tinha acesso aos medicamentos básicos para controle de convulsão. Um remédio que custa em torno de R$ 5.


De que país estamos falando quando anunciamos prisão de gente graúda com malas de dinheiro milionário e de mulheres vivendo abaixo de qualquer linha de dignidade da vida? Há nove meses, tempo de uma gestação, mas tempo para a terceira onda de mulheres afetadas pelo vírus zika, o Supremo Tribunal Federal recebeu uma ação judicial para garantia de direitos fundamentais violados de mulheres e crianças pela epidemia. Houve pedido de liminar, isto é, de decisão urgente, a única resposta possível de um governo responsável. Nada foi feito até agora, não há perspectiva de julgamento do caso. Um silêncio, como se não houvesse mais epidemia para o Ministério da Saúde e como se nunca houvesse existido para os direitos fundamentais.


Se combater a corrupção nos oferecerá um futuro melhor, cuidar da sobrevivência de mulheres e crianças é também promover a justiça. Elas são mulheres anônimas. As mesmas que, na história deste país, já eram anônimas antes da chegada da epidemia. Os dados do estudo nos mostram que há urgência na proteção dos direitos violados: é direito à comida, aos remédios, ao transporte. É o direito a existir como sobrevivente de uma epidemia cujo único responsável é o Estado brasileiro e sua negligência em eliminar o mosquito vetor.


É certo que vivemos em uma sociedade que se preocupa pouco com as mulheres nordestinas; nem mesmo o Supremo Tribunal Federal, tão atento aos rumos da justiça política do país, parece se lembrar delas. Mas há criancinhas por trás dessas mulheres. Se não for pelas mães, que seja pelas crianças: a epidemia não terminou, não houve fim de zika. Iniciamos a terceira onda de mulheres grávidas e adoecidas de zika, e centenas delas cuidam, em desamparo, das crianças afetadas pela síndrome. É tempo de o STF decidir a ação de zika.

                                                                                            

Publicado originalmente no Correio Braziliense em 21/5/2017

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