OPINIÃO

Debora Diniz é professora Faculdade de Direito, da Universidade de Brasília e pesquisadora da Anis - Instituto de Bioética Direitos Humanos e Gênero. Graduada em Ciências Sociais, mestre e doutora em Antropologia, todos pela UnB, com pós-doutorado pela UnB e pela Universidade de Leeds (Inglaterra),  É membro da Câmara Técnica de Ética e Pesquisa em Transplantes do Ministério da Saúde e membro do Advisory Committee do Global Doctors for Choice /Brasil. Vice-chair do board da International Womens Health Coalition. Atua nos temas bioética, feminismo, direitos humanos e saúde. Foi pesquisadora visitante na Universidade  de Leeds, Reino Unido (Estudos de Gêneros); Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Instituto de Medicina Social); Instituto Oswaldo Cruz (Comunicação, Informação e Saúde); Universidade de Michigan, EUA (Faculdade de Direito); Universidade de Toronto, Canadá (Faculdade de Direito e Centro de Bioética); Universidade de Sophia, Tóquio (Instituto Iberoamericano); Cermes, França (Centro de Pesquisa, Medicina e, Ciência, Saúde, Saúde Mental, Sociedade); Universidade da Califórnia em Berkeley, Estados Unidos (Departamento de Sociologia); e Universidade de Leiden, Holanda (Departmento de Antropologia). Entre vídeos produzidos e publicações, é também autora de seis livros e tem oito organizados.

Debora Diniz

 

A ficção machista é uma criação da cabeça dos homens sobre como deve ser o mundo. A realidade das mulheres, desde cedo, é a do assédio

 

A carta de José Mayer é uma confissão – “eu errei”, diz ele. Errou porque ofendeu, errou porque foi agressivo, errou porque não soube respeitar uma mulher que lhe dizia “não”.

 

Como o coronel de engenho, era um senhor poderoso a espoliar mulheres ao seu redor. Se no passado era o chicote e a cana de açúcar, no seu caso, é a celebridade global. Ao contrário do que arriscou em sua defesa, as mulheres não confundiram ficção com realidade ao denunciá-lo.

 

Quem desconhece a realidade são os homens. Realidade vivida e histórica das mulheres. A realidade das mulheres desde muito jovens é a do assédio. José Mayer diz na carta que “o mundo mudou”. Diz ainda que demorou 60 anos para aprender a lição e pede desculpas à Susllen Tonani, sua colega de trabalho que o denunciou, mas também a todas as mulheres. Inclusive às de sua família.

 

Há vários erros na carta.

 

O primeiro é ele ter demorado tanto tempo para entender que a ficção machista é uma criação da cabeça dos homens sobre como deve ser o mundo. Nós, mulheres, muito antes de ele nascer, já sabíamos que assédio é uma espoliação do corpo feminino. Demorou muito para aprender, talvez porque nunca tenha sido confrontado na tranquilidade de seu poder masculino. Por medo ou submissão, outras mulheres podem ter se silenciado.

 

Outros erros recheiam a carta.

 

José Mayer não tem que pedir desculpas a todas as mulheres; neste momento, só a uma: Susllen, quem teve sua intimidade, privacidade e integridade abusadas e violadas por ele. Não há por que incluir as mulheres do mundo, a não ser que continue se imaginando alguém tão importante que a todas nós deve alguma palavra. Está equivocado, me parece, na importância da sua humildade.

 

Há mais, bem mais na carta.

 

Para demonstrar seu interesse em respeitar as mulheres, José Mayer cita que tem esposa e filha. Sim, e daí? As mulheres da família não são ícones de honradez a um homem. Novamente, não entendo a abrangência: ele pode respeitar as mulheres de sua família e desrespeitar as da rua; desrespeitar todas, ou só respeitar as da rua.

 

Poderia passear mais pela carta, quase linha a linha.

 

Mas termino com a resignação passiva dos homens que dizem “tristemente, sou fruto de uma geração”. Ninguém é fruto de geração, todos somos produções históricas e sujeitos pensantes sobre a própria história.

 

É confortável ser o machista passivo, o senhor de engenho, o chefe da empresa, o patriarca. Há serenidade no perdão ao anunciar-se fruto da geração patriarcal – há confortos e vantagens.

 

Pedir desculpas é importante. Escrevê-las é um ato de coragem. No entanto, só o tempo dirá se o sujeito que escreveu essas linhas será mesmo alguém melhor para promover a igualdade entre homens e mulheres na sociedade brasileira.

 

Ainda há tempo – mesmo aos 60 anos, José Mayer pode ser um porta-voz de como o assédio masculino é prática insuportável para a civilização. 

 

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Publicado originalmente na revista Carta Capital em 5/4/2017

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