OPINIÃO

Cristiano Otávio Paixão Araujo Pinto é professor da Faculdade de Direito da UnB. Subprocurador-Geral do Trabalho. Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Integrante do Coletivo Transforma MP e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Coordena grupos de pesquisa "Percursos, Narrativas, Fragmentos: História do Direito e do Constitucionalismo" e “Eixos, planos, ficções: grupo brasiliense de direito e arte” (CNPq/UnB). Foi Coordenador de Relações Institucionais da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB.

Cristiano Paixão

 

As constituições possuem estruturas temporais complexas. Como documento político, uma constituição cristaliza as opções fundamentais adotadas pelas chamadas “gerações favorecidas”, aquelas que possuem a capacidade de elaborar as decisões cruciais de uma determinada comunidade. Em sua função de norma jurídica de tipo superior, uma constituição redefine todo o direito preexistente e estabelece as bases da normatividade que se seguirá.

Contudo, esse “momento privilegiado”, ou seja, essa enorme abertura para deliberação sobre o futuro que marca a atividade do poder constituinte originário, não deve ter sua importância supervalorizada. A principal qualidade de uma constituição é sua capacidade de durar: a possibilidade de ter uma vigência que sobreviva à geração que a criou.


Para que isso ocorra, é necessário, talvez paradoxalmente, que a constituição não seja a mesma ao longo do tempo. É fundamental que ela se transforme e que seja passível de constante atualização. Mantendo seus compromissos originários, suas normas (aqui compreendidas numa dimensão interpretativa) precisam ser ativadas em novos contextos, transformadas pela realidade, moldadas por novas demandas e reivindicações. A chave, portanto, para o êxito de uma constituição é a sua plasticidade, o que significa dizer que ela deve modificar-se constantemente, conservando, neste movimento de mudança, seu conjunto de princípios estruturantes.


No caso do Brasil, percebe-se que as aspirações da sociedade civil que se mobilizou em 1987-1988 para o processo constituinte permanecem válidas. A sociedade daquela época, impulsionada pela pluralidade de sujeitos coletivos que lutaram contra a ditadura durante todo o regime, foi a responsável pela elaboração de um texto constitucional avançado e comprometido com os direitos fundamentais. A Assembleia Constituinte de 1987-1988, que tinha um perfil conservador, com muitos constituintes ligados ao regime militar, foi o veículo das reivindicações sociais.


Evidentemente, há na Constituição muitos elementos de continuidade em relação à ordem jurídica autoritária. Basta pensar na estruturação das polícias e na organização da segurança pública. Mesmo assim, numa perspectiva comparativa em relação ao regime inaugurado em 1964, fica claro que o texto de 1988 representa uma ruptura com a ordem constitucional anterior. Como exemplos disso, estão o compromisso do Estado brasileiro com os direitos humanos (art. 4º, II), o respeito à dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), a previsão da tortura como crime inafiançável e insuscetível de graça e anistia (art. 5º, XLIII), o reconhecimento de que o regime militar praticou atos de exceção contra os cidadãos brasileiros (art. 8º do ADCT) e, principalmente, a opção em constituir-se como Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput).


Esses exemplos são úteis para demonstrar que as principais bandeiras dos amplos setores sociais que lutaram pela redemocratização eram a liberdade e a igualdade. Quem poderia afirmar que a sociedade brasileira não anseia, hoje, por essas mesmas causas? Qual discurso político sobreviveria, no Brasil de hoje, sem incluir essas demandas?


Exatamente por isso, é cedo, demasiadamente cedo para decretar o fim da ordem constitucional inaugurada em 5 de outubro de 1988.  As lutas políticas de hoje continuam a ser pautadas pela Constituição. Devemos estar atentos, nessas lutas, às práticas constituintes e desconstituintes que se manifestam nas dimensões políticas e sociais do Brasil contemporâneo.


Uma constituição democrática se reescreve a todo momento. Essa reescritura se manifesta por meios de práticas constituintes, ou seja, por atos, discursos, movimentos e gestos de aprofundamento da democracia existente. O Brasil tem frutíferos exemplos dessas práticas. As manifestações da sociedade voltadas à melhoria da educação, por exemplo, são típicos casos de práticas constituintes. Assim deve ser interpretada a resistência de estudantes secundaristas de São Paulo que se opuseram a uma reforma que precarizava o acesso à educação. Algumas práticas constituintes atingem uma tal repercussão na sociedade que terminam por ser reconhecidas por órgãos do Estado. Os movimentos em prol da liberdade de opção sexual e de reconhecimento de desigualdades produzidas pelo racismo geraram o reconhecimento de vários direitos: casamento homossexual, uso de nome social em espaços públicos, políticas de ação afirmativa, cotas para negros e indígenas.


Nenhuma sociedade, contudo, está imune ao efeito de práticas desconstituintes. No Brasil isso é ainda mais visível, considerando que alguns setores da sociedade – aqueles mais identificados com o regime anterior – nunca aceitaram completamente o resultado do processo constituinte de 1987-1988. Essas forças, que não são insignificantes, estão sempre se articulando para desmontar o arcabouço normativo construído em 1988. E muitas delas estão representadas no Estado e nos partidos políticos. Todo o processo de impeachment (iniciado em dezembro de 2015 e encerrado em agosto de 2016) pode ser compreendido como um golpe desconstituinte: por detrás do afastamento ilegítimo, sem crime de responsabilidade, de uma Presidente da República eleita diretamente, reside uma resistência à Constituição de 1988, cujos movimentos já vinham sendo percebidos desde a década de 1990, quando começaram a surgir tentativas de modificar os processos de alteração das normas constitucionais. Além disso, a apresentação, pelo Governo, da PEC 241/2016, que congela os investimentos públicos e impõe um regime de corte de despesas pelos 20 anos subsequentes à sua aprovação, retirando o direito da próxima geração de dispor sobre política econômica, é uma prática desconstituinte.


O futuro da Constituição de 1988 será escrito no confronto entre práticas constituintes e desconstituintes, nas arenas públicas e privadas de discussão e deliberação e nos processos eleitorais. É impossível antever o resultado dessas disputas. Mas é possível afirmar que a Constituição de 1988 continuará a ser a referência fundamental para setores da sociedade que persistirem lutando por liberdade e igualdade. Nessa perspectiva, muitos outros aniversários da Constituição poderão ser celebrados.

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