PERFIL

Pesquisadora do Departamento de Antropologia, Alcida Rita Ramos tem trajetória de quase seis décadas em defesa dos povos ianomâmis

 

Até dezembro de 2019, a Secretaria de Comunicação publica perfis de professores eméritos da UnB. Essa é uma iniciativa de valorização daqueles que fazem parte da Universidade e foram reconhecidos pelo atributo em comum que guardam com a instituição: excelência.

 

Professora da UnB desde 1972, Alcida Rita Ramos posa no Instituto de Ciências Sociais, onde está seu estimado Departamento de Antropologia. Foto: Luis Gustavo Prado/Secom UnB

 

Prateleiras repletas de livros tomam conta do escritório onde Alcida Rita Ramos recebe nossa equipe para uma breve visita. Em minha tarefa de jornalista – naquele momento, confundida com a de uma etnógrafa –, observo atentamente aquele ambiente que por si só revela parte da história de sua inquilina.

Adornando as estantes do espaço, alugado exclusivamente para desenvolver suas atividades de pesquisa, estão artefatos culturais como cestos de palha, vasos de barro, cocar e registros fotográficos – um deles, da célebre fotógrafa indigenista Claudia Andujar. Os objetos nos introduzem pouco a pouco à trajetória de ativismo nas causas indígenas.

Uma das principais referências sobre o tema no Brasil, Alcida teve importante atuação na defesa de terras para os povos ianomâmis. Na UnB, destacou-se como uma das fundadoras do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS). Atualmente é pesquisadora 1A do CNPq, o mais elevado nível de produtividade conferido a cientistas com significativa liderança em suas áreas de estudo.

No escritório, as obras expostas, acumuladas e devoradas ao longo de anos, são mostradas pela emérita com orgulho. Logo temos claros indícios de seus vínculos teóricos. “A antropologia tem muito a ensinar para o futuro. A gente aprendeu um monte de possibilidades de viver e não é para ficar nos muros da academia, mas na vida. Não vejo nenhum sentido de usar a antropologia só para ganhar um emprego. Isso é desperdiçá-la”, defende Alcida.

Portuguesa radicada no Brasil, ela mudou-se da terra natal quando ainda era criança. As recordações da infância em terras tropicais não são as melhores. “Viemos para Vitória, no Espírito Santo, porque o meu pai trabalhava na parte de marcenaria da construção naval. Portugal de Salazar estava uma miséria absoluta. Ficamos em Vitória por quatro anos e eu odiei, porque eu era vítima de bullying: a menininha com sotaque português da escola”, lembra.

Pela via do intelecto, encontrou em si a força necessária para superar os desafios de se adaptar à nova realidade. Ainda assim, as diferenças culturais deixaram marcas na pequena lusitana, que definiriam mais tarde não só a personalidade assertiva, como também suas filiações acadêmicas.

Apesar da formação em Geografia, concluída pela Universidade Federal Fluminense, foi no campo da antropologia que descobriu sua verdadeira paixão. “Com essa experiência de ser estranha no ninho, fiquei muito sensível para essa questão da alteridade. Quando tive a oportunidade de saber alguma coisa sobre os indígenas, pensei: é isso que quero fazer, porque eles são outros na própria terra. Foi por aí que veio a minha vocação antropológica”, compartilha.

ATIVISMO O envolvimento com a questão indígena e o verdadeiro aprendizado do ofício de antropóloga veio com a passagem pelo Museu Nacional, no Rio de Janeiro, na década de 1960. Lá, estagiou e cursou especialização ao lado de nomes ilustres, como Roberto DaMatta, Roque de Barros Laraia, seus colegas de classe, e Roberto Cardoso de Oliveira, já pesquisador. Com os dois últimos, também dividiu a atuação docente na UnB. Naquele ambiente, foi iluminada pelo pensamento crítico-político que efervescia nas discussões do campo.

O escritório de Alcida comporta toda sorte de referências a estudos antropológicos feitos através de décadas. Foto: Luis Gustavo Prado/Secom UnB

 

Durante o período, teve sua primeira experiência como pesquisadora indigenista com os terena, etnia habitante de áreas urbanas no Mato Grosso. Anos depois, já como doutoranda da Universidade de Wisconsin, nos Estados Unidos, decidiu se embrenhar Floresta Amazônica adentro, na fronteira entre Roraima e Venezuela, para vivenciar o cotidiano dos sanumá, subgrupo dos ianomâmis.

Isolada ao longo de séculos em terras de difícil acesso, a etnia era considerada de recente contato. “Era um povo que não falava português. Algumas aldeias tinham zero contato, outras somente com os missionários. Para chegar lá, íamos de teco-teco – eram duas horas de voo partindo de Boa Vista. Lá pelas tantas, começávamos a sobrevoar montanhas. Não tinha GPS nem nada, mas os pilotos sabiam se achar”, narra.

Em contraposição ao viés crítico aprendido em seus anos de formação no Museu Nacional, partiu à revelia pelos caminhos da etnografia tradicional para investigar a organização social daquela comunidade. Abrir-se a um universo de cultura e tradições totalmente distintas, sem nem sequer conhecer a língua nativa ali falada, a sensibilizou quanto a outras alternativas de vida. “Os sanumá envolvem muito a gente. Eles não dão sossego nem trégua. Em uma das aldeias, fui a primeira mulher branca que eles viram. Era uma curiosidade enorme.”

Com os sanumá, Alcida considera ter compreendido o verdadeiro sentido de democracia. Imersa durante um ano e meio na rotina das aldeias da região, pôde aprender valores que carregou para toda a vida, como o respeito e o compartilhar. “Ninguém põe a mão em criança para castigar. Lembro-me de uma vez em que eu estava em uma aldeia, sentada do lado de fora de casa, e comecei a escutar um menino chorando aos berros, dando chiliques, e a mãe falando: ‘Fica quieto, menino’. Ele pegou um tição da fogueira e queimou a rede da mãe. E ela: ‘Menino, para com isso’. Logo o garoto parou de chorar”, conta.

O que a docente mal imaginava era que, duas décadas depois, quando já havia assumido o cargo de professora na UnB, sua pesquisa, a qual considerava de vertente conservadora, daria bases ao laudo antropológico utilizado no processo de demarcação das terras dos ianomâmis. Com a ascensão da exploração mineral na Amazônia na década de 1980, os ianomâmis passaram a ser ameaçados com a invasão de suas terras por garimpeiros.

“Me engajei na defesa e o Ministério Público me chamou para ajudar no processo de demarcação das terras. Vi então que minha pesquisa não tinha nada de apolítica e que foi de uma serventia enorme para justificar o porquê deles precisarem daquele montão de terras”, orgulha-se. A homologação das terras, em 1992, minimizou as ameaças e garantiu a criação da maior reserva indígena do planeta, com cerca de dez milhões de hectares, para uso exclusivo e permanente dos daqueles povos.

CAMINHOS ACADÊMICOS Militância e ciência também acompanharam Alcida em seus passos como professora da UnB. O convite para integrar o corpo docente da instituição, em 1972, abriu portas para que as experiências vividas com os índios reverberassem nos corações de novas gerações de entusiastas da antropologia. Em sala de aula, debruçou-se sobre a missão de inspirar aprendizes e transmitir conhecimento sobre práticas antropológicas mais conscientes de seu potencial transformador.

Sentindo-se totalmente conectada à Universidade, a emérita enxerga na antropologia um campo de aprendizado para novos rumos a serem tomados pela sociedade. Foto: Luis Gustavo Prado/Secom UnB

 

“Meu compromisso com a UnB sempre foi a qualidade. Teve uma fase longa em que os alunos fugiam de mim que nem o diabo foge da cruz, porque eu era muito exigente. Até o Roberto Cardoso me chamava de gênio de cão”, brinca a professora. “Eu queria que nosso departamento refletisse realmente a qualidade e demonstrasse o bom fazer da antropologia”, justifica.

Ao longo de mais de 40 anos de Universidade, contribuiu para consolidar o Departamento de Antropologia e o programa de pós-graduação da área, além de alavancar o desenvolvimento de outras pesquisas e materiais na temática indígena, relevantes em processos decisórios sobre territórios desses povos. Em 2009, em reconhecimento ao trabalho de destaque, recebeu o título de professora emérita.

Apesar de aposentada, Alcida não deixou de lado a vontade de fazer ciência. Aos 81 anos, continua ministrando aulas na pós-graduação e atuando em pesquisas sobre indigenismo comparado na América Latina. Diante de tantas histórias vividas na UnB, o sentimento de pertencimento é o que prevalece. E é dele que se recorda em um dos momentos marcantes de sua trajetória acadêmica: “Estávamos no Minhocão, quando comemorávamos 20 anos da pós-graduação. Me lembro da sensação ao descer as escadas para a entrada norte. Olhei para trás e pensei: este é o meu lugar! Isso aqui é a minha familiaridade, a minha casa”.

 

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