OPINIÃO

Marcelo Hermes Lima é professor da Universidade de Brasília. Doutor em Ciências Biológicas (Biofísica) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Marcelo Hermes-Lima

 

Em 1991, durante o meu pós-doutorado no Canadá, começamos a estudar como o sistema antioxidante endógeno poderia ser parte da maquinaria bioquímica de adaptação de animais aos ambientes naturalmente extremos. A ideia (inspiração) estava ligada ao fato de que determinados animais suportam por muitas horas, ou mesmo dias, o congelamento do corpo (apenas os líquidos extracelulares) ou situações de hipóxia severa, i.e., quando há muito pouco oxigênio no ambiente para ser usado pela respiração. Esses animais enfrentam situações semelhantes a isquemia e reperfusão, que causam danos oxidativos em corações e outros órgãos de mamíferos, incluindo nós, humanos. Tendo em vista que nos anos 90 se pesquisava o papel de antioxidantes exógenos na prevenção de danos oxidativos da isquemia e reperfusão, se imaginou que esses animais que suportam congelamento e descongelamento, assim como hipóxia e reoxigenação, poderiam ter um sistema de defesa antioxidante endógeno bem desenvolvido, de forma a “enfrentar” os radicais livres. Lembrando que nos anos 90 os radicais livres (ou espécies reativas de oxigênio) ainda eram considerados grandes “vilões” celulares, e obviamente, os antioxidantes eram os “mocinhos” (conceitos bem ultrapassados hoje). Era preciso quantificar os antioxidantes endógenos nesses animais! Em dezembro de 1990 apresentei essa proposta de pesquisa no laboratório do Dr. Ken Storey, no Canadá, para realização de um trabalho de pós-doutoramento.


Os trabalhos iniciaram em agosto de 1991 com uma espécie de cobra norte-americana que é capaz de tolerar o congelamento de até 50% de seus líquidos corporais e também viver por até dois dias sem oxigênio (condição chamada de anóxia). No mês seguinte, iniciaram os estudos do tecido muscular da cobra, em amostras de animais controles (cobras em condições normais), congelados vivos ou em anóxia. As primeiras observações espectrofotométricas indicavam o aumento da atividade da enzima antioxidante catalase. Nos dias em que os primeiros resultados foram aparecendo, não havia como crer nas observações, que mostravam aumento da atividade de catalase muscular de animais congelados vivos. No dia do 1º resultado, em setembro de 1991, cheguei a anotar em meu caderno de laboratório que os resultados pareciam errados – “bad data”. Algo errado parecia estar sendo feito! Era minha impressão. Na verdade, a atividade enzimática estava tão aumentada nesse animal que não era possível calcular com exatidão o valor. Não parecia possível que a cobra aumentasse a atividade dessa enzima em uma condição onde o metabolismo estava tão reduzido! Afinal, os bichos estavam congelados (mas vivos), em uma temperatura de -2,5oC, em depressão metabólica, e se esperava que síntese de proteínas estivesse paralisada! O dr. Storey, meu então chefe, comentou naquela época: “too cold”, em descrédito desse resultado inusitado.


Depois de muitas analises, após vários dias de trabalho, quantificando diversos outros espécimes de cobras, o resultado do aumento da atividade de catalase (cuja abreviação é CAT, ver Figura) se matinha. Não parecia “lógico”, mas era o que estava acontecendo. Não tínhamos ainda explicação para esse fenômeno. O fato era que a catalase estava, em média, 183% mais ativa no músculo das cobras congeladas do que nos animais controles. Posteriormente verificamos que a atividade da catalase de pulmão também estava aumentada nos animais congelados, assim como a atividade da glutationa peroxidase (GPX) de músculo (Figura).  Além disso, a enzima superóxido dismutase aumentou no músculo e fígado das cobras em anoxia. Tais resultados indicaram que haveria um preparo para os estresses do descongelamento e da reoxigenação. Publicamos esses achados no American Journal of Physiology em março de 1993, 30 anos atrás.


Três décadas se passaram desde a publicação desse primeiro estudo. Por todo esse tempo (até o presente momento) temos trabalhado para entender esse fenômeno, que não é restrito apenas em uma espécie exótica de cobra. Muito mais que isso, são mais de cem espécies animais, pertencentes a 9 filos – vertebrados e invertebrados. Todos aumentam suas defesas antioxidantes em preparo a um estresse ambiental. Batizamos em 1998 esse fenômeno de aumento das defesas antioxidantes (para a prevenção da ação lesiva em potencial de espécies reativas de oxigênio) de “hipótese do preparo para o estresse oxidativo”, ou hipótese do POS. Tínhamos um fenótipo nas mãos, mas ainda sem explicação bioquímica.


Somente em 2015 fomos capazes de entender detalhadamente os mecanismos moleculares do POS – a partir daí o POS foi “promovido” para a categoria de “teoria”. Alguns anos depois (em 2020 e 2021) publicamos as primeiras evidencias do POS na natureza. Isso porque tudo que havia sido estudado até então, era feito em simulações de laboratório. Os primeiros resultados do POS na natureza vieram de duas espécies de sapos da caatinga, que se enterram em leitos secos de rios. Esses estudos foram feitos em conjunto com o dr. Daniel Moreira, servidor da Faculdade de Medicina da UnB, um jovem biólogo genial e trabalhador.
Nos orgulhamos de saber que hoje, pesquisadores de mais de 40 países fazem, ou já fizeram, pesquisas envolvendo a teoria do POS. A expressão “preparation for oxidative stress”, em referência ao POS já foi utilizada em mais de 700 publicações de autores de diversos laboratórios do mundo.


Apesar dos estudos iniciais do POS terem sido produzidos no Canadá (entre 1991 e 1995, junto com meu ex-professor), mais de 90% do que produzimos foi feito em território brasileiro, em nossa universidade. Fundamental o agradecimento à profa. Elida Campos, do IB-UnB, por sempre nos ajudar com esses estudos.


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