OPINIÃO

José Jorge de Carvalho é professor da Universidade Brasília e coordenador do Encontro de Saberes (Instituto de Inclusão - CNPq/UnB).

José Jorge de Carvalho

 

Comemoramos hoje o primeiro Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé. Sua sanção pelo presidente Lula fez coincidir a data de celebração e reflexão acerca das tradições religiosas e espirituais de matriz africana no Brasil com a data definida pela ONU como o Dia Internacional contra a Discriminação Racial. Essa coincidência almejada expõe abertamente a atitude de racismo, preconceito e intolerância religiosa praticadas pelo contingente branco contra as nossas tradições espirituais afro-brasileiras; e sinaliza também a disposição do atual governo de finalmente colocá-las no patamar de dignidade e importância para a cultura nacional que elas merecem.

 

O título da Lei permite cobrir praticamente toda a vasta gama das tradições espirituais afro-brasileiras; e dando o devido destaque à pluralidade das religiões de matriz africana, unifica-as sob o manto do termo “Nações de Candomblé”.  Já o termo “Raízes das Tradições Afro-brasileiras” congrega todas as demais tradições, tais como o Congado, a jurema, a umbanda, o jongo, o batuque, a capoeira, o maracatu, entre outras.

 

A generalização do termo candomblé é um ganho político considerável, pois recolhe uma denominação local e coloca-a como um termo religioso nacional, incluindo nele o xangô do Recife, o tambor de mina do Maranhão, o batuque do Rio Grande do Sul, entre outras variantes. Candomblé passa a assumir um estatuto análogo ao do protestantismo, que também representa o conjunto das diferentes denominações cristãs advindas da reforma: luteranos, batistas, metodistas, pentecostais e outros. As Nações de Candomblé, a partir de agora, deverão ser tratadas como equivalentes das religiões cristãs (católicas, protestantes e ortodoxas) e de todas as demais religiões praticadas no Brasil (espiritismo, judaísmo, islamismo, budismo, hinduísmo, daoismo e outras).

 

O candomblé foi consolidado no final do século XVIII e nunca parou de crescer e de criar novos modelos, estilos e gêneros artísticos e religiosos. Hoje, o povo de santo se encontra presente em todos os estados da federação, e o número de terreiros pode ser contado em dezenas de milhares. Contudo, não houve um único ano, nos últimos dois séculos, em que os terreiros não tenham sido atacados pela polícia a mando do segmento cristão branco dominante – antes exclusivamente pelos católicos, mas nos últimos 50 anos também pelos evangélicos. E qual é a perspectiva ética e social que marca o candomblé (e também o Congado e todas as demais matrizes espirituais afro-brasileiras)? A perspectiva do acolhimento, da casa aberta ao estranho. Quem entra numa casa de santo encontra atendimento espiritual e refúgio; e recebe sempre o convite ao convívio do povo de santo.

 

O candomblé não rejeita ninguém pela sua identidade sexual, até porque os orixás espelham a diversidade sexual humana; não discrimina por gênero, pois a maioria das lideranças é de mulheres e também de trans; não aceita discriminação racial, pois uma pessoa branca é tão respeitada pela sua patente no santo quanto uma pessoa negra; os preceitos são sempre os mesmos, independente da classe social; e há lugar para pessoas de todas as idades: pessoas dos cinco anos de idade aos 90 participam plenamente da comunidade, cada um cumprindo funções rituais distintas e complementares. Também os portadores de deficiências são acolhidos e suas habilidades específicas incentivadas. Vi recentemente nos maracatus do Recife duas pessoas portadoras de Down integradas nas baterias, uma moça tocando abê e um senhor tocando alfaia. Todas essas instâncias de acolhimento são resultado da construção de uma proposta civilizatória baseada na convivência entre todos, cada um de acordo com suas habilidades e preferências, sempre de um modo não dogmático e singular, cada terreiro ou comunidade encontrando suas próprias regras. Mais ainda, o candomblé convive intimamente com as tradições católicas e não rejeita nenhuma outra religião.

 

A Lei 14.519/23 valoriza as tradições religiosas afro-brasileiras colocando-as em pé de igualdade com as demais religiões praticadas no Brasil. Além do respeito a elas devido, é preciso assimilar e replicar para a nossa sociedade, tão fraturada, polarizada, eivada de sectarismos, intolerâncias e atitudes destrutivas para com os diferentes, os princípios civilizatórios do candomblé e das demais tradições espirituais afro-brasileiras. Afinal, se os terreiros têm sido atacados ininterruptamente ao longo dos últimos 250 anos por membros da comunidade branca hegemônica cristã, isso significa que esse grupo branco responsável pelo modelo de sociedade injusta e desigual em que vivemos nunca construiu uma proposta viável de convivência entre todos que habitam o Brasil.

 

Podemos celebrar hoje um grande avanço neste início de retomada da luta contra o racismo, a homofobia, a misoginia e a intolerância religiosa no Brasil. Diante de uma inadiável reconstrução nacional, as tradições espirituais afro-brasileiras precisam assumir o palco como referência fundamental de um novo pacto civilizatório geral, capaz de assimilar positivamente a interseccionalidade da convivência interétnica, inter-racial, intergêneros, interclasse, intercorpos e todas as demais. Axé o!

ATENÇÃO – O conteúdo dos artigos é de responsabilidade do autor, expressa sua opinião sobre assuntos atuais e não representa a visão da Universidade de Brasília. As informações, as fotos e os textos podem ser usados e reproduzidos, integral ou parcialmente, desde que a fonte seja devidamente citada e que não haja alteração de sentido em seu conteúdo.