OPINIÃO

Nelson Fernando Inocêncio da Silva é professor do Departamento de Artes Visuais, do Instituto de Artes, da Universidade de Brasília e coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab/Ceam/UnB). É doutor em Arte pela UnB.

Nelson Fernando Inocêncio da Silva

 

Em 21 de março de 1960, quando a tropa policial a serviço do regime do Apartheid decidiu interromper uma manifestação negra pública e pacífica, no bairro de Shaperville, periferia da cidade de Johanesburg, África do Sul, iniciava-se ali mais um ato de brutalidade resultante de um modelo político baseado na injustiça social, leia-se institucionalização do racismo conjugada com a propaganda da supremacia branca. O protesto, que contava com cerca de 20 mil pessoas, era contra a Lei do Passe, alusiva a obrigatoriedade de um tipo de ‘passaporte interno’, para controlar o trânsito de negros e negras dentro do seu próprio território. A interrupção violenta da passeata organizada pelo Congresso Pan-Africano terminou com 69 mortos e cerca de 180 feridos, após a polícia racista abrir fogo contra uma população indefesa.


A difusão do fato pelos órgãos de imprensa, não comprometidos com tal regime, chocou parcela da opinião pública global identificada com os direitos humanos. Em 1969 a Organização das Nações Unidas, pressionada, sobretudo, por estados africanos, vítimas das agressões daquele governo segregacionista na região da África Austral, decide instituir o Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial, tendo como referência o 21 de março, quando ocorreu massacre.  A data continua a ser lembrada, mesmo após o fim do Apartheid em 1991. Além dessa decisão, de valor simbólico, a ONU organizou 3 edições da Conferência Mundial contra o Racismo, em 1978 e 1983, ambas em Genebra na Suíça e a última em 2001, em Durban na África do Sul pós-Apartheid.


Tais acontecimentos na esfera global dialogam com as lutas históricas do movimento negro no Brasil. Abdias do Nascimento, ativista afro-brasileiro que exerceu mandatos como deputado federal e senador da República, enfatizava que o racismo deveria ser tipificado como crime de lesa-humanidade. Conforme o direito internacional, refere-se às agressões endereçadas a grupos específicos, a exemplo dos genocídios.


Ao tomarmos como instrumento de análise os mapas da violência no Brasil, pelo viés cor/ raça, não será difícil observar a persistência do racismo produzido no âmbito das instituições que constituem o aparato de segurança de estados e municípios. Se no imaginário da polícia do apartheid a imagem das pessoas negras representava um mal a ser extirpado, podemos dizer que a violência policial em nosso país permanece, alimentada por um germe semelhante ao que contaminou o modelo de repressão na África do Sul, nos Estados Unidos e em outros contextos. Os episódios mais recentes, que culminaram na eclosão das manifestações públicas embaladas pelo slogan ‘Vidas negras importam!’, são uma evidência disso.


No limiar do século XXI, precisamente em 2001, ano da supramencionada 3ª Conferência Mundial contra o Racismo, ocorre a inauguração do Museu do Apartheid, em Johanesburg. Trata-se de um memorial que compõe a linha tempo, mostrando as atrocidades perpetradas contra a população negra local, porquanto durou o regime nefasto (1948-1991).  O acervo constitui-se de farto material entre registros fotográficos, fonográficos, audiovisuais e artefatos os quais buscam provocar o público remetendo-o às imagens do horror e levando-o a compreender o fardo de um legado absurdo, no afã de que nunca mais se repita.


O Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial continua a ter relevância, na medida em que práticas odiosas persistem no cenário global. Uma das palavras de ordem recorrente no ambiente do movimento negro brasileiro, desde os anos 70, reiterava que a luta contra o racismo é internacional. Determinadas violências, voltadas aos povos de países africanos ou às populações afrodiaspóricas em diversos países, nos dizem respeito. Assim sendo, vale destacar que, tão importante quanto a abolição das leis segregacionistas nos Estados Unidos ou o fim do regime do apartheid na África do Sul, é a superação definitiva do mito da democracia racial no Brasil. Tarefa difícil, pois tal fenômeno, pilar do racismo estrutural, não consta no arcabouço jurídico do país, embora ainda fomente o imaginário social.


Em tempos sisudos, nos quais vemos um tsunami reacionário mundial, é preciso que os segmentos da sociedade civil, avessos a toda forma de autoritarismo, comprometam-se no combate à vulnerabilidade dos segmentos historicamente vulneráveis. Nesse sentido, enfrentar o racismo é condição imprescindível, sem a qual nenhuma democracia sobreviverá.  






 

ATENÇÃO – O conteúdo dos artigos é de responsabilidade do autor, expressa sua opinião sobre assuntos atuais e não representa a visão da Universidade de Brasília. As informações, as fotos e os textos podem ser usados e reproduzidos, integral ou parcialmente, desde que a fonte seja devidamente citada e que não haja alteração de sentido em seu conteúdo.