OPINIÃO

Marcelo Tadeu dos Santos é sociólogo, doutorando em História pelo PPGHIS/UnB e professor dos cursos de Direito e Relações Internacionais do Centro Universitário de Brasília.

Marcelo Tadeu dos Santos

 

O debate em torno da reação do governo Lula diante da postura do Banco Central com relação as altas taxas de juros, chamou a atenção de parte do público brasileiro para um tema que é fundamental para entender o nosso atual panorama político e social. A ideia de um Banco Central independente é algo muito caro a uma série de especialistas da área econômica, que desde os anos 90 defendem a construção de um conjunto amplo e bem estruturado de mecanismos legais que protejam as autoridades monetárias de qualquer tipo de intervenção política no que diz respeito a condução das normativas que garantem o pleno funcionamento do mercado.

Essa perspectiva, ancorada numa dimensão do funcionamento das estruturas institucionais, pauta-se pela noção de que certos aspectos da vida econômica possuem uma natureza puramente técnica, esvaziados de qualquer dimensão política. Os operadores desse campo específico do pensamento político, econômico e social, acreditam que o mercado possui leis próprias de funcionamento que independem da vontade e da ação dos sujeitos. O centro do debate se desdobra em torno da tese de que determinadas decisões que são tomadas pelas autoridades políticas, responsáveis por conduzir o processo de administração estatal, podem causar instabilidades indesejadas, gerando obstáculos para o funcionamento de todo mercado e causando uma série de contratempos no processo de modernização e desenvolvimento da vida econômica. 

Essa perspectiva, que se tornou hegemônica nos espaços de elaboração e condução da administração pública, pauta-se pela necessidade de uma separação profunda entre economia e política, onde qualquer perspectiva de mudança dos parâmetros de funcionamento e organização dos modelos de gestão econômica são vistas como fruto de oportunismos políticos de matriz “populista”, marcados por um profundo processo de retrocesso que vai interromper, de forma trágica, todo um esforço de modernização do nosso sistema econômico. A resposta dada pelo presidente do Banco Central ao presidente Lula, no dia 07/02, está totalmente amparada nessa noção que se tornou um dogma, em todos os sentidos que essa expressão possui, dos operadores e idealizadores do mercado a partir do final dos anos 80. A visão de Campos Neto reforça a ideia de que não há alternativa para a construção de outras formas de organização da vida econômica que não sejam aquelas que se subordinem ao receituário ultraliberal, atendendo a uma demanda estabelecida, de forma arbitrária, pelo capital financeiro. Temos de nos conformar com os parâmetros de organização da produção nos moldes ditados pelo mercado, essa entidade que na contemporaneidade acabou por encarnar na sua constituição os interesses do bem comum.  


Os equívocos dessa perspectiva de orientação política e econômica são muitos e vêm sendo tratadas de forma bem sofisticada por uma série de pesquisadores que se ocupam da relação entre política, economia e sociedade. Especificamente, no campo da história política e econômica, uma série de renomados pesquisadores têm se ocupado em demonstrar, através de suas pesquisas que, ao contrário do que afirma o discurso liberal, mercado e Estado sempre estiveram juntos. O pleno funcionamento do mercado só foi possível graças a um processo político que garantiu o desenvolvimento de estruturas jurídicas e políticas que demonstraram um profundo compromisso com os interesses dos agentes desse mercado. Falar em capitalismo é falar em Estado e entender que as condições necessárias para o estabelecimento desse capitalismo só foram possíveis porque o Estado forneceu as ferramentas necessárias para o desenvolvimento desse processo. O Estado é fruto dos interesses do mercado e sua existência está determinada, desde a modernidade, pelas exigências dos sujeitos políticos que atuam no contexto da vida econômica.  


Separar Estado de economia e estabelecer uma agenda de governabilidade marcada pelo impedimento dos sujeitos políticos de interferir na esfera de articulação da vida econômica é parte de um programa de natureza política, que busca atender os interesses de um segmento específico do capitalismo contemporâneo. A independência do Banco Central e da agenda econômica são mecanismos de um projeto político. É importante ressaltar que essa demanda por autonomia é um mecanismo que reforça a dependência destas esferas aos interesses de setores econômicos que ganham muito com o mercado especulativo e que não se incomodam se esses ganhos estão pautados num contexto de aumento significativo da miséria e da barbárie.


Numa sociedade que se compromete com um processo de combate à desigualdade e que entende a necessidade de se articular cotidianamente em torno da disposição em se construir direitos e estabelecer uma justiça fundada na noção de diversidade e de inclusão social, é fundamental entender que o planejamento econômico é parte de um programa desenhado num contexto vivo de exercício de poder. E nesse sentido, um Banco Central totalmente independente e submetido aos interesses do capital financeiro é um obstáculo gigantesco a essa proposta de rearticulação da vida política, econômica e social nos moldes da democracia. 

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