OPINIÃO

Hugo Leonardo Lopes de Faria Costa é jornalista, especialista em comunicação pública e mestre em economia.

Hugo Costa

 

Há 20 anos, o Brasil madrugava ou nem mesmo dormia para acompanhar a seleção liderada por Ronaldo e Rivaldo. A Copa do penta talvez tenha sido a última em que o jogo jogado teve mais relevância que o jogo político, disputado longe do campo. O país era outro, o mundo era outro. A diferença de 12 horas de fuso para o mundial organizado por Japão e Coreia do Sul não impedia que o futebol jogo dominasse as pautas das ruas, das reuniões familiares e do cafezinho no trabalho.

 

E o que mudou de lá para cá? Como o futebol jogo saiu da agenda? Passamos por uma perda coletiva da inocência? Antes de propor uma avaliação despretensiosa e subjetiva, é preciso contextualizar 2002. À época, a sociedade brasileira parecia estar superando a página da hiperinflação e havia a expectativa, logo confirmada, de que a esperança de embarcar em um governo popular de esquerda poderia superar o infundado medo de se perder a recém-adquirida estabilidade econômica.

 

O mundo de dois decênios atrás ainda estava sob comoção pelo 11 de setembro do ano anterior. A destruição física e emocional causada pelos ataques às torres norte-americanas abalava aquela geração, que aos poucos descobria como se comunicar por meio de uma incipiente rede de computadores. As permanentes tensões lá fora e cá dentro, entretanto, não impediam que os brasileiros desfrutassem de uma pausa para o genuíno congraçamento oferecido pelo futebol jogo.

 

Os mundiais seguintes foram gradualmente perdendo esse poder. Em 2006, o favoritismo do time de Parreira sucumbiu ao clima de oba-oba na Alemanha, escolhida como sede após controversa votação que preteriu a África do Sul. Ao país africano coube a realização da festiva copa seguinte. Embalada pelo waka waka, a edição teve brilho ofuscado por indícios de corrupção em obras e por acusações de pagamento de propina a organizadores. Nenhuma novidade para o futebol político, mas escandaloso no contexto de uma das nações mais desiguais do globo.

 

Desigualdade também é característica inglória da sede de 2014. A segunda Copa no Brasil pode ser analisada por uma infinidade de aspectos. O país vivia uma efervescência nas ruas desencadeada por reivindicações que estavam além dos 20 centavos e recrudesciam a polarização política. Manifestações com pautas múltiplas colocavam em xeque a realização dos jogos. O temor era acentuado pelas incertezas sobre o funcionamento da infraestrutura de logística e dos esquemas de segurança.

 

Como sábia resposta, o brasileiro se esforçou para ser o melhor dos anfitriões, ainda que a maior parte da população não pudesse ousar pagar por ingressos que podiam custar mais de um mês de salário. O sorriso no rosto superou as demandas pelo Padrão Fifa. Foi aplacado, contudo, por um certo 7 a 1. E murchou de vez quando as contas chegaram e os benefícios não. O jamais finalizado VLT de Cuiabá e os estádios subutilizados são heranças que doem como uma goleada histórica.

 

Veio então a Copa da Rússia. O Brasil, que dois anos antes sediava os Jogos Olímpicos, no mesmo período em que depunha uma presidente, estava mais dividido politicamente. Assistir aos jogos em grupos heterogêneos, deixar as diferenças de visão de mundo de lado e se ater ao debate pelas escolhas do Tite já não parecia mais viável. Evidenciadas pela mídia, as virtudes e as mazelas do maior país da extinta União Soviética passaram a ser utilizadas como argumentos de uma disputa ideológica que trazia mais contenda que reflexão.

 

Eis que uma nova Copa bate à porta quatro anos e meio depois. E, ao que tudo indica, o clima da edição do Catar outra vez vai destoar do vivido em 2002. A referência, claro, não é ao calorão do Oriente Médio, que empurrou a competição para o fim do ano. O extracampo global é para lá de desfavorável, em especial pelo enfrentamento do luto pela morte de mais de 6,5 milhões de pessoas na pandemia de covid-19. Soma-se a isso as apreensões por repetidas denúncias de violação de direitos humanos no país-sede.

 

No Brasil, o momento também não pressupõe a trégua de 20 anos atrás. Após uma eleição permeada por seguidos episódios de intolerância, ainda que o escolhido tenha sido o mesmo do ano do pentacampeonato, não se percebe movimentações efetivas pela conciliação. Até mesmo a camisa verde e amarela, que já representou unidade, transformou-se em símbolo de luta política para uns e elemento de aversão para outros. Bom seria se a expectativa por dias difíceis fosse frustrada e o futebol, que com Pelé já interrompeu guerra, pudesse ser instrumento de calmaria e paz.   

 

Esse desejo não busca ignorar contextos históricos e interesses escusos do esporte ou propõe estimular qualquer tipo de alienação. Pelo contrário, a defesa é pela busca consciente da pacificação a despeito do uso que o outro fez do voto ou das roupas que se pretende usar. O futebol jogo pode ser importante para unir quem pensa diferente, uma forma de juntar para sermos “nós” em lugar do solitário “eu” descrito por Galeano ao tratar da tristeza do estádio vazio após pulsar com o torcedor.

 

Dividir a mesa, o sofá ou a televisão para torcer com o diferente seria um ato nobre pela reconciliação de um povo, um gesto em favor de uma aliança por um futuro de tolerância e paz. Ao olhar para as atuais circunstâncias, essa parece ser uma missão quase inviável. Distensionar esse país, entretanto, seria uma glória maior que a conquista do hexa.

 

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