OPINIÃO

 

 

Danielle Naves de Oliveira é jornalista e tradutora, membro do Grupo Siruiz e pesquisadora colaboradora do Programa de Pós-Graduação da FAC-UnB.

Danielle Naves de Oliveira

 

É lendo que se perpetua o escrito. Primeiras estórias, o livro de contos que agora comemora 60 anos, nos faz provar desse gostinho de posteridade. Tal é o espírito do Colóquio internacional Primeiras estórias, que reúne 21 estudiosos de primeira linha para explorar e conversar sobre cada um dos contos. Entre maio e agosto, dá-se a travessia que vai das “Margens da alegria” aos “Cimos”, com palestras atentas ao caleidoscópio de formas, linguagens, imagens, questões sociais, históricas e mitopoéticas ali presentes.


“A gente tem de escrever para 700 anos. Para o Juízo Final”, disse Guimarães Rosa numa das tantas cartas trocadas com seu tradutor alemão, Curt Meyer-Clason. A perenidade de um livro depende de complexa combinação de fatores, que quase sempre escapam ao controle do autor. Mas a este não custa nada desejar, cumprindo, claro, com seu porcento de transpiração. Rosa não era modesto nesse sentido e tampouco poupava seus mais caros interlocutores.


Claro, temos de pensar no contexto e no clima dessa correspondência, principalmente tratando-se de autor diplomata. Não fosse o extremo cuidado para com o amigo, a afirmação de Rosa soaria grandiloquente e escatológica. Porém, na mesma carta, poucas palavras à frente, tratou de suavizar o dito: “tudo isso é só para desculpar-me da atrevida irreverência com que comentei as suas magníficas páginas”. Ali, o assunto era o trabalho árduo com o texto, envolvendo cansativas correções e aprimoramentos, o que nos mostra que ele media milimetricamente as palavras, tanto nas amizades quanto na própria obra.

Também declarou algo semelhante a Günter Lorenz, outro amigo alemão, na famosa entrevista realizada em Gênova, em 1965: “Quero escrever livros que depois de amanhã não deixem de ser legíveis”, disse lúcido, pois como grande leitor de livros de antes-de-ontem sabia, muito bem, como se chega aos livros de depois-de-amanhã.

Escrever para 700 anos não é para qualquer um. Quantas obras dessa idade (ou mais antigas) sobrevivem entre nós? As de Homero, Dante, Camões? A Bíblia? E que tipo de posteridade é essa? São questões respondidas apenas esparsamente, aqui e acolá, enquanto lemos, seja como leitores leigos, desavisados, seja como estudiosos insistentes ou apaixonados.


A cada encontro do Colóquio Internacional Primeiras Estórias vão-se revelando elementos dessa força de posteridade, depositada em detalhes do livro, desde a organização espelhada dos contos até a capa e o índice ilustrado. As estórias são “primeiras” pois fundadoras, primordiais e, somente por isso, capazes de conversar com leitores de muitas épocas e contextos culturais ou geográficos.


Pelas contas de Rosa, ainda não seremos nós os últimos a lerem seus livros. Ainda faltariam 640 anos para o Juízo Final. Oxalá ele esteja certo.


(A autora agradece a contribuição de Clara Rowland para este artigo.)

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