OPINIÃO

Kelly Cristiane da Silva é doutora em Antropologia e professora do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília.

Kelly Silva

 

Hoje, 20 de maio de 2022, Timor-Leste celebra 20 anos de restauração de sua independência, conquistada depois de 24 anos de uma brutal ocupação indonésia que, em território maubere, realizou o maior genocídio da história, em termos relativos, depois da Segunda Guerra Mundial. Tal ocupação foi antecipada por mais de 400 anos de colonização portuguesa e por uma efêmera independência, proclamada unilateralmente em novembro de 1975.  A transição do país à independência foi gerida por uma inédita missão de administração estatal das Nações Unidas, Unatet, chefiada pelo brasileiro Sérgio Vieira de Melo, morto em Bagdá em 2003.  


Em nome da ajuda humanitária e do desenvolvimento, elites locais e instituições de cooperação internacional têm trabalhado incessantemente para aplacar a pobreza, uma frágil economia de mercado nacional, déficits de recursos humanos e infraestruturas, altos índices de subnutrição, analfabetismo e violência doméstica, assim como a desigualdade de gênero, o risco de instabilidade política, etc. Em que pese o valor de olhares atentos aos desafios que se impõem a cada um desses subcampos de ação, é preciso lembrar do que está a ser produzido pela ação sinérgica destes múltiplos esforços de governança: as infraestruturas objetivas e subjetivas de uma sociedade e economia para e de mercado.


Apesar de Timor-Leste ser uma sociedade pós-colonial, os legados teóricos de Norbert Elias, Karl Polanyi, entre outros, nos são úteis para melhor compreender diferentes eventos que têm feito da reconstrução do Estado em Timor-Leste capítulos da edificação e expansão da sociedade de e para o mercado. O Estado tem se construído a partir de um processo de monopolização do poder que se dá por meio da incorporação ambígua de instituições e saberes locais, como as autoridades comunitárias e várias práticas culturais autóctones. “Sequestradas” pelo Estado enquanto significantes de uma nação em construção, tais instituições são remodeladas a fim de responder aos interesses do Estado e figurarem como conduítes de processos de modernização, modulando novas subjetividades e suas respectivas manifestações institucionais.


Nesse contexto, rituais e cosmologias locais são mobilizadas para constranger as pessoas a poupar recursos monetários para melhor se engajar na economia de mercado. Relações de vizinhança e parentesco são utilizadas por bancos de microcrédito para evitar o não pagamento de empréstimos, ao mesmo tempo em que desejam manter as pessoas endividadas.  Ao lado disso, a economia leste-timorense é repetidamente retratada como débil e carente de diversidade por várias agências de governança. A falta de precisão no discurso parece estar à serviço do que de fato está em jogo em muitas das políticas econômicas realizadas no país: a monopolização da economia pela economia de mercado.


As dinâmicas econômicas pelas quais se dá a produção e reprodução das populações leste-timorenses é extremamente diversa. Uma mesma unidade doméstica recorre a diferentes regimes de produção, troca e consumo em seus esforços econômicos. A diversidade e racionalidade destas ecologias econômicas não são passíveis de apreensão pelos instrumentos de mensuração das agências de governança contemporâneas.


As dinâmicas econômicas locais estão à serviço da reprodução das instituições locais e não combinam com a busca de lucro do mercado e a extrema desigualdade que a alimenta. Secularmente, têm sido essas mesmas práticas econômicas locais aquelas que permitiram às populações timorenses sobreviverem à ausência de Estados que por elas zelassem.  Em vez de reconhecer sua inabilidade de capturar e compreender tal diversidade econômica, as agências de governança promovem seu silenciamento a fim de fomentar um maior engajamento das pessoas com a economia de mercado. Mas, então, a qual diversificação econômica estão se referindo os múltiplos projetos de mudança social em Timor-Leste?


O que hoje se chama de diversificação econômica é tão somente um trabalho pela expansão e diversificação da economia de mercado. Como tem ocorrido em outros lugares, tal fato promoverá uma substituição nas redes de interdependência nas quais as pessoas estão enredadas, fazendo-as cada vez mais dependentes da economia de mercado. Na verdade, projetos em prol da diversificação econômica trabalham para a monopolização da economia pelos interesses do mercado.  Para tanto, como há muito Norbert Elias nos lembrou, é preciso pacificar as relações, e a monopolização do poder pelo Estado tem se mostrado muito útil nesse processo. Nesse contexto, os 20 anos da restauração da independência em Timor-Leste são exemplares do que está implicado na paz liberal.

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