OPINIÃO

 

Ela Wiecko Volkmer de Castilho é professora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre a Mulher (NEPeM/UnB) e ex-vice Procuradora Geral da República. 

Ela Wiecko V. de Castilho

 
Causa perplexidade o acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo, de outubro de 2020, que impôs à Sociedade Civil Católicas pelo Direito de Decidir a adequação do estatuto social para excluir a expressão "católicas", sob pena de, não o fazendo, ser compulsoriamente dissolvida após o trânsito em julgado da decisão.


O fundamento do acórdão é que a referida associação, ao defender o direito de as mulheres decidirem pelo aborto, atua de forma incompatível com os valores adotados pela Igreja Católica. Viola o cânone 1.398 do Código de Direito Canônico.


Daí o estranhamento. Como se justifica que tribunal de um Estado laico decida  controvérsia sobre a aplicação de uma norma da Igreja Católica? Ciente dessa incongruência o Tribunal elaborou a seguinte construção argumentativa: (i) a finalidade associativa de Católicas pelo Direito de Decidir de defender a descriminalização e legalização do aborto é incompatível com os valores da Igreja;(ii) equipara-se a conduta de provocar o aborto, uma conduta passível de excomunhão;(iii) a sociedade não pode utilizar a palavra "católicas" em sua denominação social; (iv) se o faz, viola o art. 115 da Lei dos Registros Públicos que protege a moral e os bons costumes, e ainda o art. 187 do Código Civil, porque comete um ilícito.


Essa construção ao estabelecer um fundamento na lei do Estado brasileiro, na verdade reafirma a lei da Igreja Católica, pois a premissa é de que moral e bons costumes são o que a Igreja diz que é. Assim, uma suposta incompatibilidade com a religião católica foi qualificada de imoral e atentatória aos bons costumes, infringindo a lei brasileira.


Quem afinal diz o que é imoral e contrário aos bons costumes? No jogo de palavras fica evidente que a doutrina das autoridades eclesiásticas é superior à doutrina produzida por autoridades laicas em diversos campos do conhecimento. Tanto que dois terços do acórdão correspondem à transcrição de textos de doutrina católica.


No esforço de estabelecer a interseção da lei canônica com a lei estatal, é  também invocado o Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e a Santa Sé relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil. De conformidade com ele, aos lugares de culto da Igreja Católica, a suas liturgias, símbolos, imagens e objetos culturais é garantida a proteção pelo Estado brasileiro contra toda forma de violação, desrespeito e uso ilegítimo. A redação do Acordo não assegura, porém, a proteção da doutrina católica pelo Estado brasileiro. E é disso que se trata quando o acórdão intervém numa associação de mulheres que se assumem católicas.


Não cabe ao Estado afirmar que elas não são católicas e que, por isso, violam a moral e os bons costumes ou cometem ilícito. É importante que o Estado mantenha sua imparcialidade em relação a todas as manifestações religiosas ou não religiosas, ou seja, a sua laicidade.

 

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Publicado originalmente pelo O Globo on-line RJ em 08/02/2021

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