OPINIÃO

Daniel Gomes de Carvalho é doutor em História Social e professor de História Moderna no departamento de História da Universidade de Brasília. É autor de diversos livros e artigos, entre eles a tradução de Justiça Agrária (Paco Editorial, 2019) e Filosofia para Mortais (Harper Collins, 2020).

Daniel Gomes de Carvalho

 

Em 2020, passamos a viver uma crise econômico-social acelerada pela expansão da covid-19. Trata-se de uma catástrofe certamente inesperada, uma vez que a emergência do vírus é imprevisível, mas sem dúvida anunciada, dado que as fragilidades de nossos sistemas de seguridade social são conhecidas há décadas.


Em contextos de crise, é natural que volte à baila o tema da Renda Básica como horizonte emancipatório. A proposta, vale lembrar, nada tem de novidade. Em 1918, momento em que se encerrava a Primeira Guerra Mundial e o mundo enfrentava a gripe espanhola, Bertrand Russel, em Os caminhos da Liberdade (1918), propôs uma Renda Básica a todo cidadão. Para se contrapor aos que diziam que ela nos levaria ao ócio, o autor lembrava dos trabalhos assistenciais não remunerados, por um lado, e das rendas que muitos milionários recebiam sem trabalhar, por outro. Milton Friedman, visto como um grande representante do liberalismo, defendeu uma espécie de renda mínima garantida pelo Estado, o “imposto de renda negativo”, como expresso em seu Capitalismo e Liberdade (1962). Hoje, o filósofo e economista belga Philippe Van Parijs, fundador do Basic Income Earth Network (BIEN, Rede Mundial da Renda Básica), é um dos principais defensores da renda básica.


Poucos, sabem, contudo, que a primeira proposta de Renda Básica – garantida pelo Estado e constitucionalmente protegida – de que temos notícias deu-se durante a Revolução Francesa, em 1797, pelo revolucionário britânico Thomas Paine (1737-1809). Thomas Paine foi ator, intérprete e testemunha de três situações revolucionárias, dos dois lados do Atlântico e quase simultâneas: a Revolução Norte-Americana, de 1776, que resultou na Independência dos Estados Unidos; a agitação revolucionária vivida pela Inglaterra nos primeiros anos da década de 1790, que buscava uma renovação do sistema político britânico; e a Revolução Francesa de 1789, momento fundamental na formação da contemporaneidade.


Nenhum protagonista foi, nesses três países e a um só tempo, tão consagrado e execrado quanto ele. Nos Estados Unidos, Paine foi aclamado, graças aos panfletos O Senso Comum (1776) e A Crise (1776-1783), como um dos responsáveis pelo sucesso da Independência, e foi convidado a fazer parte do primeiro governo do país. Porém, quando do seu enterro, em 1809, próximo a Nova Iorque, havia somente seis pessoas presentes. Na Inglaterra, por ter mobilizado milhares de ingleses com seu Os Direitos do Homem (1791-1792), foi perseguido pelo governo e condenado à morte. Na França, depois de ajudar na criação do primeiro manifesto republicano da Revolução, de ser eleito deputado por quatro departamentos na República em 1792, e de participar da Comissão de deputados encarregada de elaborar a Constituição, foi encarcerado pelos jacobinos em 1793 e mantido preso por quase um ano.


Thomas Paine enfrentou a hostilidade de três homens todo-poderosos, de posições políticas distintas: William Pitt, primeiro ministro da Inglaterra entre 1783 e 1801, Maximilien de Robespierre, líder jacobino e expoente do período do Terror, e George Washington, líder da independência norte-americana e presidente dos Estados Unidos entre 1789 e 1797 – os dois primeiros o condenaram à morte, enquanto o terceiro absteve-se de tomar medidas para salvar-lhe a vida. Pitt e Washington repudiaram-no, respectivamente, porque ele era democrata e deísta; Robespierre odiava-o porque ele se opôs à execução do rei Luís XVI e ao Terror.  Paine foi visto pelos norte-americanos como radical e pelos jacobinos como moderado, ou melhor, para usar as palavras do próprio Robespierre, como um “moderantista” (na visão do advogado de Arras, moderantista era um homem que, por covardia ou oportunismo, não é radical quando necessário). Do ponto de vista religioso, a partir do momento em que Paine publicou A Idade da Razão, em 1794-5, ele, um deísta convicto, passou a ser visto como ateu e inimigo da fé, o que bastou para que se tornasse uma figura estigmatizada.


Durante a Revolução Francesa, com o fim da hegemonia jacobina, Paine, após escapar da prisão e, por pouco, da pena de morte, assumiu sua cadeira de deputado na Convenção Francesa, em dezembro de 1794. Entretanto, o fato de a esquerda não estar mais no poder não fez com que Paine deixasse de criticar os governantes, então chamados termidorianos (referência ao golpe do 9 Termidor, que derrubou Robespierre): ele efetuou duras críticas, notadamente ao voto censitário e ao imobilismo dos deputados em resolver a questão da pobreza.


Foi nesse contexto que surgiu o panfleto Justiça Agrária, escrito no inverno de 1795-1796, enquanto Paine residia na casa do ministro norte-americano James Monroe. O texto, portanto, foi escrito pouco depois da queda do governo jacobino no dia 27 de julho de 1794. Embora escrito no inverno de 1795-1796, o panfleto só viu a luz no inverno de 1797, momento em que Paine já não era deputado na França. Ele foi publicado primeiramente em Paris, pela cidadã Ragouleau, e, em seguida, em Londres, por Thomas Williams, o qual, pouco tempo depois, seria mandado para a cadeia pelo Tribunal Superior de Justiça. Nos Estados Unidos, em 1797, apareceram edições do panfleto em Albany e na Filadélfia, publicadas pelo radical exilado Richard Lee. No momento da publicação, Paine habitava uma residência cedida a ele pelo amigo Nicolas de Bonneville, fundador do famoso Cercle Social, do qual haviam saído muitas ideias e publicações antes do início do Terror jacobino. Como demonstrado em estudo recente pelo historiador Brent Ranalli, o texto conheceu ampla circulação e significativo impacto no período.


O intento do texto é claro: Paine propõe um imposto sobre a herança, do qual seria criado um fundo de rendas a ser distribuído para todas as pessoas (ricas ou pobres) a partir dos 21 anos (inválidos ou doentes poderiam receber a renda anteriormente).  Essa renda, distribuída pelo Estado, seria promotora da cidadania, da justiça social, da igualdade de oportunidades e da autonomia. Além disso, considerando que, na França, o voto era censitário, ela teria como consequência imediata garantir o voto universal almejado por Paine.


Em Justiça Agrária, o autor mantém-se firme no que posteriormente foram reconhecidos como os três pilares do pensamento liberal clássico: defesa dos direitos individuais, do livre-cambismo e da propriedade privada. Por isso, o encontra-se no mesmo campo conceitual de John Locke, Adam Ferguson e Adam Smith – a linguagem dos interesses, dos direitos naturais e do contratualismo percorrem a obra do pensador inglês. Contudo, Paine afastou-se das posições meramente negativas da liberdade e mostrou de que forma o Estado deve ajudar aos desafortunados e garantir sua autonomia, como também farão os chamados “liberalismos sociais” de Hobson e Hobhouse na passagem do século XIX para o século XX.


O argumentos de Paine em defesa da renda básica surpreendem pela sua atualidade: em primeiro lugar, a natureza é sempre bem comum de toda a espécie humana, de forma que se torna propriedade privada apenas o fruto do trabalho sobre a terra, e não a terra em si; em segundo lugar, toda riqueza (tanto no campo, quanto na cidade) é criada socialmente, embora frequentemente apropriada individualmente, de forma que existiria, em suas palavras, uma diferença entre profunda entre aquilo que o trabalhador produz e aquilo que o trabalhador recebe; em terceiro lugar, a herança é contrária a qualquer ideia justa de competição e mérito e, por isso, seu impacto deve ser mitigado. A renda básica proposta pelo autor, assim, seria uma maneira de preservar a propriedade privada e evitar as disparidades sociais gritantes, as quais são mães de todas as revoltas, como se provou na revolta de Graco Babeuf. Os críticos de Paine, evidentemente, não deixarão de lembrar o descompasso entre a radicalidade da crítica à propriedade e a moderação de sua proposta de renda básica. O principal exemplo dessa crítica é o livro Rights of Infants, de 1797, do radical socialista inglês Thomas Spence.


O projeto de Paine, contudo, não teve chance alguma de ser aprovado. O governo francês se opunha tanto ao voto universal quanto a qualquer forma de imposto progressivo. Nesse sentido, o deputado Dauchy declarava em 10 frimário, ano IV da Revolução (1º de dezembro de 1795): “os Estados não prosperam senão ligando o máximo possível os cidadãos à propriedade. O imposto progressivo é uma lei de exceção contra os cidadãos abastados (...). O imposto progressivo é, para dizer numa palavra, o verdadeiro germe de uma lei agrária, que é preciso sufocar no nascedouro”.


A fortuna desse panfleto de Paine é ambígua e avassaladora. O radical Thomas Hardy, fundador da London Corresponding Society, um dos primeiros movimentos operários da história, escreveu uma carta a Paine chamando Justiça Agrária de uma "das melhores obras que você escreveu". A obra também influenciou John Bone e Robert Owen, os quais encomendaram 50 cópias para enviar a Maidstone. William Blake, após ler Justiça Agrária, comparou Paine a Jesus Cristo. Há também influências do pensador na utopia de Edward Bellamy, Looking Backward (1888), e no trabalho de Paul Goodman, Communitas (1947), cuja obra, feita ao término da 2a Guerra Mundial, propunha criar uma economia mista entre comunismo e capitalismo. Whitfield, no texto The Bust of Thomas Paine, aponta Paine como o “verdadeiro pai do Estado de Bem-Estar Social”. Harvey Kaye, da Universidade de Wisconsin–Green Bay, lembra que o Partido Comunista dos Estados Unidos publicou uma coleção das obras de Thomas Paine em 1937 e o descreveu como um visionário que enxergou “além dos limites da revolução burguesa” e que propôs um “sistema de segurança social”.


Até o momento, já foram feitas várias tentativas de aplicação da Renda básica. Um exemplo deu-se no Alasca, em 1976; o governador Jay Hamond passou a destinar 25% de todos os royalties provenientes da exploração do petróleo ao Alaska Permanent Fund Corp (APFC), cujo tesouro era distribuído à população. No Irã, a Lei do Subsídio Focalizado, criada a partir da taxação do petróleo, pagou mensalmente aos cidadãos aproximadamente R$ 40. A província de Alberta, no Canadá, em janeiro de 2006, concedeu a todos os seus cidadãos 400 dólares canadenses devido aos lucros com o petróleo. No Reino Unido, Tony Blair, baseado em Ackerman e Alstott, criou o Fundo da Criança, que propiciou a todos os nascidos a partir de 2003 250 libras esterlinas. Na Finlândia, em 2017, entrou em vigor uma experiência localizada e temporária de renda mínima.


Em todos esses casos, a preocupação é que, nas próximas décadas, o desenvolvimento tecnológico torne obsoletos vários tipos de trabalho e, assim, crie uma quantidade enorme de desempregados. A ideia de uma renda básica, além disso, apresenta-se como importante forma de combater a inseguridade social ensejada pela crise do Covid-19. Dessa forma, se é verdade que as discussões sobre a Renda Básica têm sua origem em Justiça Agrária, está demonstrada a importância e a fertilidade desse texto para a posteridade.


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