OPINIÃO

Oyanarte Portilho é professor do Instituto de Física da Universidade de Brasília. Graduado em Física pela UnB, mestre e doutor UNESP.

Oyanarte Portilho

 

Há meio século, exatamente, encontrava-me, como calouro da UnB, de matrícula 286/68, em sala de aula na ala sul do Minhocão, assistindo à exposição da disciplina Geometria Analítica e Cálculo Vetorial (GACV). De repente, passou alguém gritando pelo corredor, informando que a polícia estava presente. Consternação geral. A professora recomendou que ficássemos ali mesmo, aguardando os acontecimentos. Mas a inquietação tomou conta de mim e resolvi me dirigir para a entrada sul – a única existente, já que a ala central estava em construção e a norte encontrava-se nas primeiras fundações – para tomar pé do que estava ocorrendo. De fato, havia ali vários policiais, civis e militares. Decidi evadir-me o mais rapidamente possível do prédio pois me recusava a ser detido ou preso por nada, e continuei para a ala central. Consegui sair por entre vigas de concreto em direção à Asa Norte. Quando cruzei aproximadamente o local onde hoje se encontra o RU, ouvi ruídos de balas zunindo próximo à minha cabeça. Interrompi a corrida e olhei para a entrada sul – vi alguns policiais me alvejando de lá. Instintivamente me joguei ao chão. Nos segundos que se passavam crescia em mim a dúvida do que fazer: esperar os policiais chegarem, atirarem primeiro e perguntarem em seguida quem eu seria, ou se deveria arriscar a retomada da carreira. Depois de uns dois minutos optei por correr. Permaneci incólume, felizmente. No dia seguinte, o CB estampou foto em primeira página que mostrava os estudantes em fila indiana, inclusive colega com deficiência física, de muletas, caminhando com as mãos sobre a cabeça para a quadra de basquete. Ficaram expostos ao sol por algum tempo, chegaram a ser dirigidos para alguns ônibus, para evacuação com destino incerto, mas veio contraordem e foram liberados. Não sem antes de alguns atritos entre genitores e policiais, que procuravam defender seus filhos, como no caso do colega Álvaro Lins (posteriormente perseguido e expulso da UnB, e mais tarde dedicou-se ao marketing político – falecido há pouco mais de um ano), que tinha pai deputado. Porém, não se livraram do vexame e do trauma.

 

Outras invasões policiais se seguiram na UnB naquele ano de 1968, de todo fatídico para o Brasil e para o Mundo. Diversas palavras-chave me voltam à mente, caracterizando a época, como Vietnam, yankees-go-home, Cohn-Bendit, B-52, napalm, agente-laranja, Lyndon-Johnson, Ho-Chi-Mihn, McNamara, Westmoreland, Giap, ofensiva-do-Tet, massacre-de-My-Lai, efeito-dominó, guerra-fria, Mao, livrinho-vermelho, primavera-de-Praga, acordo-MEC-USAID, sem-lenço-sem-documento-tomo-uma-coca-cola, Edson-Luiz, restaurante-do-calabouço, subversivo, UNE, encontro-de-Ibiúna, FEUB, Honestino, AI-5...

 

Na quinta-feira, dia 26/4/2018, às 10 horas, concluí minha aula no BSAS e dirigi-me para a mesma entrada sul do Minhocão, percorrendo o prédio por fora. Não sei o porquê, mas me recordava, nesse trajeto, dos acontecimentos de 50 anos atrás. Lá chegando, encontrei a entrada obstruída por carteiras e portões lacrados com fita adesiva, como resultado da ação de vários estudantes. Perguntei a uma mocinha o que eles pretendiam, pois não deixavam ninguém entrar ou sair. Ela respondeu que eu poderia entrar pela extremidade sul do prédio, lá estava livre. Naquele momento continuei sem entender o motivo daquilo, mas voltei pelo mesmo caminho em busca do outro acesso. Já dentro, topei com um rapaz sem camisa, a qual cobria o seu rosto, portando um cabo de vassoura à guisa de porrete. Não sei quem ele esperava enfrentar, pois não havia policiais que pudessem lançar bombas de gás, câmaras gravando suas feições ou inimigos com quem se envolver em pancadarias. Mais parecia um black bloc deslocado, sem nenhuma vivência com o campus. Enquanto isso, prossegui refletindo sobre a ironia simbólica do ocorrido, guardadas as devidas proporções. Fora expulso do prédio pela presença de forças policiais naquela mesma entrada sul e quase morri; agora, encontrava dificuldades para entrar ali, por oposição de força de alguns estudantes – ao que tudo indica, sem apoio da maioria dos discentes – muitos anos depois. Certamente faziam parte do grupo que ocupou a Reitoria por mais de duas semanas, liberada depois de pacientes negociações. Compreendo que a motivação do movimento advém das dificuldades financeiras da UnB – e consequente redução da mão de obra terceirizada, além de possíveis reflexos sobre os subsídios no RU, recursos para manter estagiários, etc. – situação que não é só dela, mas de todas as IES mantidas pelo governo federal. Ainda mais, compõem uma crise ético-político-econômica mais ampla, que envolve todo o país. Contudo, não deixo de fazer registro do meu mal-estar diante do contraste pelo que passei. Já não teríamos nos livrado de todos os fantasmas da violência que nos assolavam no passado? Não vejo de que forma essas ações possam trazer algum benefício para a Universidade ou que demonstrem efetiva solidariedade para com os terceirizados que estão sendo afastados por suas empresas, como consequência dos recursos insuficientes da instituição. Pelo contrário, só criam mais entraves para a busca de possíveis caminhos para se mitigar a crise. Ocupar a Reitoria e prédios onde acontecem aulas tornou-se rotina nos últimos anos. Parece que esses grupos julgam que é preciso esfolar a Universidade para que ela receba a atenção que merece. Será mesmo essa a opção adequada?

 

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